segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cidadania para o consumidor por: Maria Inês Dolci -Folha de S. Paulo



É necessário educar o consumidor para que ele saiba, no mínimo, quando alguém quer enganá-lo


Nome limpo é um dos principais valores para o consumidor de baixa renda. Sem ele, não consegue fazer compras a prazo, contrair um empréstimo ou até trabalhar com registro em carteira.
Ser considerado devedor, portanto, é sinônimo de portas fechadas no comércio, nos bancos e no mercado de trabalho.
Por isso, aterroriza-se quem recebe ligação de uma "empresa de cobrança" informando que há dívidas pendentes e que o nome passará a constar dos registros do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) ou do Serasa.
Na verdade, o golpe é a cobrança de dívidas que já estouraram o prazo legal, ou seja, não existem mais.
Na maioria das vezes, elas já foram até oficialmente contabilizadas como passivo pelas instituições financeiras.
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) proibiu, recentemente, os cartórios de protesto de enviar títulos para listas de devedores sem o "aceite" do consumidor.
Isso deveria evitar a picaretagem, mas milhões de pessoas desconhecem seus direitos. Recebem uma ligação ameaçadora, assustam-se e se propõem a renegociar os débitos. Os criminosos que compraram um cheque vencido agradecem e embolsam o dinheiro ilegalmente.
Fica evidente a falta que faz a educação para o consumo, desde cedo, em escolas públicas e privadas, obrigatoriamente. Governos investem tanto em publicidade laudatória com objetivos políticos e tão pouco para ensinar e para esclarecer os direitos dos cidadãos.
O CNJ fez a sua parte, mas muitos continuarão a ser enganados por se sentirem desamparados e não ter condições de consultar um advogado. A Justiça, para parcela expressiva da população, parece um ente abstrato, voltado exclusivamente para proteger quem nasceu em berço esplêndido.
O CDC (Código de Defesa do Consumidor) é um arcabouço legal avançado e moderno. Mas quantos o conhecem e sabem usá-lo como referência ao adquirir produtos e serviços? Quantos entendem o que significam seus artigos e disposições?
Na Prova ABC, que mediu o desempenho dos estudantes brasileiros de escolas públicas e privadas, pouco mais da metade dos alunos demonstrou habilidade de leitura, embora tivessem concluído o terceiro ano do ensino fundamental.
É essa realidade que dificulta a aplicação do CDC. Estamos falhando miseravelmente na divulgação de um código que faz a diferença na vida das pessoas, enquanto há um processo de ascensão às classes C e D, com a consequente ampliação do número de pessoas que compram comida, roupas, calçados e medicamentos.
O golpe das velhas dívidas já vencidas, cobradas como se ainda valessem, é só a ponta do iceberg dos abusos cometidos contra pessoas que se consideram indefesas. E que, na maioria das vezes, desconhecem a quem e como recorrer.
No capítulo 2 do CDC, que trata da Política Nacional de Relações de Consumo, são definidos os princípios que devem ser atendidos para haver mais transparência e harmonia. Dentre eles, a educação e a informação de fornecedores e de consumidores sobre seus direitos e seus deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo.
É justamente o que não tem ocorrido, o que abre espaço para golpes de todos os tipos.
Talvez nem fosse preciso ensinar especificamente uma disciplina exclusiva sobre o CDC. Bastaria, por exemplo, em matemática, dar aulas práticas sobre como calcular o quanto um produto fica mais caro se for comprado a prazo. Em português, explicar expressões básicas das relações de consumo -como o que é contrato abusivo.
Nas aulas de ciências, mostrar como identificar o prazo de validade de um produto, o teor de sal e de gorduras. Organizar palestras e visitas a órgãos públicos e privados de defesa do consumidor. Contar a história das relações de consumo. E mostrar como lutar por seus direitos.
Já há toda uma estrutura ministerial e de órgãos que tratam do consumidor. É urgente, porém, educar o consumidor brasileiro para que ele saiba, no mínimo, quando tentam enganá-lo.

MARIA INÊS DOLCI, 56, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias na Folha S Paulo (Folhainvest).

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